Colabroração: Ricardo Cunha
Fotos gentilmente cedidas por Rogerio da Luz
Ler os calendários oficiais do automobilismo na fase pré 1971 (quando eram publicados) era uma coisa fascinante, verdadeiras peças de ficção. O de 1967 chega a ser delicioso, pelo menos no que concerne o primeiro Torneio Nacional de Fórmula Vê, precedido pelo eufemístico adjetivo “Grande”, para lhe dar a devida importância. Na forma publicada na revista AE, este campeonato previa provas em Belo Horizonte, Brasília, Curitiba, Porto Alegre, Blumenau, além de Rio de Janeiro e São Paulo. No fim das contas, só houveram provas nas duas últimas cidades. O calendário de 1965 também tinha das suas: diversas provas de Fórmula 3 programadas no curso do ano, sendo que a única participação de um F-3, no ano, foi a do Willys Gávea nos 500 km. Às vezes corridas eram incluídas nos calendários de campeonato brasileiro, disputadas, e depois disso, retirava-se o status oficial da prova. Isso aconteceu nos 1000 km de Brasília de 1968. Os 42 participantes foram informados do engodo logo após a realização da corrida, e obviamente indignados, foram informados por um magnânimo alto oficial da CBA, ali presente, que os ganhadores receberiam então o título de campeões brasileiros! Isso sem contar o segundo (longe de “Grande”) campeonato nacional de Fórmula Vê, que acabou tendo duas provas, a última boicotada por pilotos paulistas. A categoria teve uma história curiosa nesse ano, pois embora o “Nacional” só tivesse duas provas, o torneio Carioca teve cinco, e foram disputadas diversas provas extracampeonato, em lugares tão longínquos e inusitados, como Salvador e Campinas. Durma-se com um barulho desses.
A má administração da cartolagem, e de certa parte dos clubes, vinha há muito impedindo o crescimento ou até a sobrevivência do automobilismo brasileiro. Entretanto, a ida de diversos pilotos brasileiros à Europa a partir de 1968, com o subseqüente sucesso de alguns, deu uma injeção de ânimo generalizada, e uma conscientização de que deveria haver mais organização no esporte, pois tínhamos talento no país que estava sendo desperdiçado. Antonio Carlos Avallone, por exemplo, disputou algumas provas de F-Ford e F-5000 em 1968 e 1969, e antes disso já organizava provas no Brasil. Ao voltar ao País, aplicou aqui o que observara na Inglaterra. Entre outras coisas, o Brasil desejava entrar permanentemente no calendário internacional do automobilismo, e aquela atmosfera de salve-se quem puder, para não dizer bagunça, tinha que acabar. As pazes entre a CBA e ACB, quase forçada numa época em que reinava o AI-5, foi importante para colocar o automobilismo em um patamar organizacional diferente.
Assim o ano de 1971 foi um ano chave na história do automobilismo brasileiro, pois aos trancos e barrancos, procurou-se fazer um calendário, que, se não foi seguido à risca, pelo menos dividia o automobilismo em uma estrutura mais lógica, removendo alguns dos erros do passado, enfatizando campeonatos, e não eventos.
Entre outras coisas, finalmente criava-se um campeonato exclusivo para carros de turismo. Este foi o que mais sofreu em termos de questão calendário naquele ano. Reminiscente da Fórmula Vê de 1967, foi publicado um bem intencionado calendário de “integração” com provas de longa distância de pomposos títulos no Recife, Salvador, Curitiba, etc., que acabou não se concretizando. Se não fossem os gaúchos, o campeonato não teria acontecido, e quase teve a sua denominação oficial retirada, pois só teve três provas e o regulamento exigia o mínimo de cinco. Prevaleceu o bom senso, e foi mantida a titularidade.
Criou-se também um Campeonato Brasileiro de Velocidade, para carros de Fórmula Ford, categoria estreante no Brasil. Após a bem sucedida realização do torneio BUA de Fórmula Ford em 1970, houve ímpeto suficiente para criar a categoria no Brasil, com carros equipados com motor Corcel. A Ford teve uma boa participação na criação e manutenção do campeonato nesses primeiros anos, composto de provas curtas de duas baterias.
Por último, haveria um Campeonato Brasileiro de Viaturas Esporte, na realidade, no molde dos “campeonatos brasileiros” existentes até então, composto de provas de longa distância, aberta para carros esporte, protótipos, GT e turismo. O automobilismo brasileiro, a partir de meados da década de 50, favorecia as provas de longa distância, ao passo que no automobilismo mundial, a tendência já era oposta. Em verdade, em pouco mais de 15 anos de uma dieta forte de corridas de longa distância, o automobilismo brasileiro só conseguira criar três clássicos, as Mil Milhas, os 500 km de Interlagos e os 1000 km de Brasília, de forma que algo obviamente havia de errado com este modelo. A maioria das provas não tinha, individualmente, sustentação e apelo próprios, campeonatos eram necessários. Além de serem caras.
Uma outra coisa curiosa acontecia com as corridas de longa distância. A partir de 1969, diversos protótipos e carros esporte de última geração e grande cilindrada voltaram a ser trazidos para o Brasil. Entre outros, foram trazidos duas Alfa P33 (a primeira destruída em Interlagos, a outra de Toninho da Matta), um par de Lolas T70, um Ford GT40, e diversos Porsche, entre outros. Ocorre que tais “bichos papões” não tinham preparação suficiente para agüentar corridas de até 12 Horas, e quem acabava ganhando as provas eram carros menos velozes, porém mais resistentes. Tal fato ficara patente nos 1000 km da Guanabara de 1969, quando nem a P33, nem o Ford GT40 nem tampouco a Lola T70 estavam no final para ver a bandeirada, dada a um humilde Lorena Porsche, seguido de uma Alfa GTA, e diversos carros com motorização VW. Mas esta ainda era uma fase de transição, e portanto, as corridas de longa duração imperaram no calendário de 1971.
O campeonato de 1971 acabou tendo quatro provas: três em Interlagos e uma em Tarumã, iniciando-se com as 12 Horas de Interlagos de 1971. No grid, uma mistura eclética de carros. As já bem testadas Alfa Romeo GTA e GTAM da Jolly, dois protótipos Fúria, um com motor Chevrolet e o outro FNM, uma Lola T70, a venerável Carretera 18 de Camilo Christófaro, o protótipo Bino Mk II, além de uma velha Maserati 300 S de 3 litros, pilotada por Salvador Cianciaruso e Domingos Papaleo. Além disso, inúmeros Pumas e VW. No final, não houve muita surpresa: os bichos-papões abandonaram, e a vitória caiu que nem uma luva na mão dos herdeiros do Pão de Açúcar, Abílio e Alcides Diniz, seguidos de outra Alfa, de Leonardo Campana e Ubaldo César Lolli. Lian Duarte e Tite Catapani chegaram em terceiro com um Royale, colocação que seria muito útil para Lian no final do campeonato. Em 15o. Lugar, a carretera de Nelson Marcilio/Juan Gimenez, a última classificação da uma carretera em prova de campeonato brasileiro. Em 20o., um protótipo brasileiro chamado Heve, construído no Rio de Janeiro. O melhor Puma terminou em 6o.
A segunda etapa ocorreu quase quatro meses depois, as 6 Horas de Interlagos. Nessa prova já correram as duas Porsche da Equipe Hollywood: a 910 com Lian Duarte e Chiquinho Lameirão, e a 908/2, com Luiz Pereira Bueno e Anísio Campos. Lian e Chiquinho ganharam a prova, seguidos pelos irmãos Diniz, na Alfa GTAM e um Heve de 1,9 litros em 3o. Lugar, com Adolpho Trocolli e Roberto de Oliveira. Jaime Silva dirigiu um Fúria, agora com motor BMW, chegando em 4o. lugar, seguido de VWs, Alfas e Pumas. Entre os concorrentes que abandonaram, Alex Dias Ribeiro dividiu o protótipo Amok (erroneamente indicado com o Camber nos resultados das revistas) com o futuro senador Luis Estevão!
A etapa de Tarumã ocorreu em 1 de agosto, e novamente, foi ganha pelo Porsche 910 da Hollywood, com Lian e Chiquinho, desta vez seguido do 908/2 de Luisinho e Anísio. Abílio Diniz chegou em bom terceiro, seguido de Jose Pedro Chateaubriand, com Puma, Alex Ribeiro com o Amok(Camber) e Vicente Domingues com o Heve. O protótipo paranaense Manta-VW fez sua estréia em competições do Campeonato Brasileiro, com Luis Moura Brito na direção. Como esta prova fora relativamente mais curta, de 300 km, diversos pilotos optaram por correr solo, com a notável exceção das duplas da Hollywood.
A quarta e última etapa foi a clássica 500 km de Interlagos. Desta feita, Lian correu no 908/2, fazendo dupla com Luis Pereira Bueno, e Lameirão com Anísio Campos no 910. Lian, Chiquinho e Abílio Diniz, tinham chances de ser campeões. Obviamente, no anel externo de Interlagos as chances da Alfa GTAM bater os dois bem preparados Porsche na base da velocidade era impossível. Portanto, para ser campeão Diniz tinha que esperar o abandono dos dois carros, e de alguns outros carros mais rápidos. Entre outros, estavam inscritos Antonio Carlos Avallone com uma Lola T70; Norman Casari dividiu o seu protótipo Casari com motor Galáxie com Jan Balder; duas BMW com Paulo Gomes e Roberto Dal Pont; um Royale equipado com motor Alfa Romeo, inscrito pela Equipe Jolly com Eduardo Celidonio ao volante, além de diversos Pumas, Opalas e a velhusca Maserati de Cianciaruso/Papaleo. Notável a presença de Ciro Cayres, com um Opala quase standard.
A prova acabou sendo um passeio da Hollywood, com Luisinho/Lian em primeiro, e Chiquinho/Anísio em 2o. Abílio Diniz, correndo em dupla com o experiente Zambello, chegou só em 6o. lugar, decidindo que a vida de empresário lhe era mais adequada . Lian Duarte foi campeão, e Lameirão o vice, em grande dobradinha da Hollywood. O campeonato terminou com a seguinte classificação:
1. Lian Duarte - 31 pts
2. Chiquinho Lameirão - 24
3. Abílio Diniz - 20 pts
4. Luiz Pereira Bueno e Alcides Diniz - 15
6. Anísio Campos - 12
Cabe lembrar que foram disputadas diversas outras corridas para carros esporte/protótipos durante o curso do ano, que não foram incluídas no Campeonato Brasileiro. Se fossem incluídas, certamente Luis Pereira Bueno teria sido o campeão.
A face do automobilismo brasileiro estava mudando bastante em 1972. Os brasileiros muito aprenderam sobre organização de corridas, após os torneios internacionais de F-F, F3, F2 e protótipos, de 1970 em diante, e os patrocinadores começaram a descobrir o automobilismo, sendo notável o marketing feito pela Hollywood em cima da sua excelente equipe. Já se notava em 1971 a presença de diversos protótipos made in Brazil bem feitos e atraentes, longe do molde dos horripilantes protótipos CBA e Patinhos Feios dos idos de 1967/69: Heve, Casari, Newcar, Manta, REPE. Assim, decidiu-se fazer um Campeonato Brasileiro para Viaturas Esporte e um outro especial para protótipos nacionais. Os nacionais ainda poderiam correr no primeiro, mas os estrangeiros não podiam correr no torneio dos carros nacionais. Mais importante foi a total exclusão dos carros de turismo: ou seja, nada de Fuscas e Opalas, ou mesmo Alfas GTA e BMW: o campeonato agora era de carros esporte mesmo.
A tendência de Tarumã-1971 foi confirmada em 1972. Nos dois campeonatos de viaturas esporte, só os 500 km de Interlagos tiveram “longa duração”. De fato, no país inteiro só se realizaram provas de longa duração no Rio Grande do Sul, provas locais para carros de Turismo. O Brasil entrava fundo na fase das corridas sprints.
A primeira corrida do CBVE foi realizada em Tarumã, tendo uma hora de duração. A corrida teve só 14 carros, mas entre outros se encontravam uma Lola T210, um Ford GT40 e um McLaren M8C de 5 litros. O carro campeão do ano anterior só conseguiu o 5o. posto nessa corrida, com Anísio Campos, e Luisinho mais uma vez dominou, seguido de Tite Catapani, Paulo Gomes com o Ford GT40 e Sergio Mattos com o McLaren. Entre outros, largaram o Newcar, o Manta, um Heve e um protótipo FNM nas mãos do piloto local Cláudio Muller. A decisão de encurtar as corridas foi acertada: pela primeira vez, todos os bichos papões de uma corrida terminaram um evento!
A segunda etapa foi os 500 km de Interlagos, a primeira edição internacional da corrida. Entre os estrangeiros, correram Reinhold Joest, com Porsche 908/3 e Herbert Muller com uma Ferrari 512M, além de diversos pilotos europeus. Luis Pereira Bueno demonstrou o alto nível de preparação do Porsche da Hollywood, combatendo com Joest a corrida inteira, e superando a potencialmente mais rápida Ferrari, com o veterano Muller. Cabe lembrar que a Porsche não tinha equipe oficial neste ano, mas escolhera a pequena equipe de Joest como time “quase” oficial. No final, Luisinho chegou em 2o. na geral. Entre os brasileiros, o 2o. foi Marivaldo Fernandes, com uma Alfa T33/3 inscrita pela Jolly, seguido de Nilson Clemente, com o excelente Avallone Ford, Clovis Ferreira com o Porsche 910, e Jaime Silva, com o Fúria agora equipado com um motor Lamborghini.
Infelizmente, o CBVE de 1972 seguiu a triste tendência de micro-campeonatos brasileiros, tendo mais um único evento, também realizado em Interlagos. Muito se esperava desta corrida, realizada em 12 de novembro. Luisinho já era o campeão, mas esperava-se a presença do GT40, da Alfa T33 da Jolly e do McLaren. Os três carros não participaram, e de estrangeiros mesmo, só largaram o Porsche e a Lola da Hollywood, e os Porsches de Angi Munhoz e Clovis Ferreira. O resto do grid era composto de carros de divisão 4, que não tinham condições de peitar os estrangeiros. Entre estes, três Avallone-Chrysler, com Avallone, Luis Carlos Pinto Fonseca e Arthur Bragantini, favoritos para ganhar entre os nacionais, um Fúria com motor Chrysler, pilotado por Eduardo Celidonio, dois Heve, inclusive Mauricio Chulan, um protótipo Chrysler, um Newcar e um, AC. Luisinho ganhou a corrida, seguido de Tite Catapani, Angi Munhoz e Bragantini ganhando entre os made in Brazil.
Porsche 907 de Angi Munhoz
O CBVE de 1972 terminou com a seguinte classificação:
1. Luiz Pereira Bueno , 27 pts
2. Jose Renato Catapani, 12
3. Marivaldo Fernandes, 6
4. Clovis da Gama Ferreira, 5
5. Paulo Gomes, Nilson Clemente e Angi Munhoz, 4
O torneio marcou a despedida oficial de puros sangue de corrida estrangeiros em campeonatos brasileiros, até os anos 2000 (estes voltaram a disputar provas avulsas, como a Mil Milhas, a partir de meados dos anos 90). Ainda ocorreria a Copa Brasil, no mês de dezembro, que também contou com parca participação de brasileiros. Nem a Hollywood , Greco nem a Jolly apareceram no fraco torneio. Os protótipos estrangeiros foram excluídos do calendário nacional a partir de 1973, dando lugar ao torneio de Divisão 4. Alguns destes carros, inclusive o GT40, a T33 e o Royale, acabaram adaptados com motores nacionais, e inscritos na Divisão 4.
Com este campeonato, fechou-se um capítulo da história das corridas no Brasil, que a partir do ano seguinte, seriam realizadas quase exclusivamente com equipamento nacional. Ou quase...